POEMAS DE JOSOALDO LIMA RÊGO
Jauára Ichê
O mundo não acaba em tuas mãos
A borda da dobra é frouxa
Da Anatólia vês o Piauí
Do Pantanal, a Antuérpia
§
Nos Baixões de Altamira
em altamira/pa
raimundo nonato decide
matar o tempo:
dança no escuro
e arranca 4 dentes à foice
sem paz
ao som duma turbine
de hidroelétrica
§
Mar
A densidade da floresta
desaparece no mar
É o que pode desidratar sonhos
A salvação por distâncias
§
Nômade
cabeça aberta
exposta na rua
quando a língua abre
o osso quando é de sal
a casa
§
Inversões
1
chove
e é apenas a pior
solução
depois é seco – quase
igual ao mar
quando nasce
2
tentou a imagem
da cabeça plana
não reconheceu
a terra – a gravidade
da forma
3
procurar o chão
à maneira das pedras
4
o canto da boca semiaberta
diz conhecer o mundo
quase grego, circular
sobreposto ao ocidente
diz península maré ilha
ou
o horizonte fede muito
5
é o modo como a guerra acaba
“legítima”
cantada por aedos
ou exposta na tv
6
a fluidez da vida
no sopé do muro
exposta
ou inventada
numa fotografia aérea
[mesmo antes
de qualquer navegador
genovês]
o golpe é sempre o centro
da forma
do tempo pensado
e desilusão
7
conviver com o terror,
repetir o terror. dois gritos
do fausto alemão berlinense
delirante com falta de ar. Um
naturalista não delira à toa
a paisagem ideal é
ígnea
8
esvaziar o circo
cuidar dos negócios
9
O risco, a lama
Alguns ícones
nascem do chão
(de Carcaça)
§
Felizes juntos
mais tarde sorriremos de tudo
quando a história for contada por um estranho
que sonha estar num matadouro
a sussurrar as últimas palavras no ouvido da vítima:
felizes juntos
§
Iñárritu
As coisas podem soar mais violentas
quando nascemos latino-americanos
Sobressaem com o tempo: o dente chicano
e uma fronteira terrível perto do olho
Um corpo desterrado
(de Máquina de filmar)
§
Chinelos caídos
Esquálida, olhos voltados para o corpo.
Vontade social para certos temas.
Ela trepava por compromisso político:
Aleijados, deprimidos e desempregados.
Talvez acreditasse na transformação do mundo.
O gozo, a estátua no canto do quarto:
– daqui por diante, nunca mais a fantasia
de que impossíveis gestos podem ser
a magia necessária para estações dégradés.
§
Açúcar
livrei-me do perigo
nasci no maranhão na era das migrações
e escapei impune dos canaviais de são paulo
escapei do corte da cana mais dura
(de potência da sacarose da cana
tratada em laboratório)
por descuido não peguei o trem fantasma
na belém-brasília
não enfiaram-me num albergue de beira de Estrada
pago pelo gato da fazenda
envelheci sem conhecer aquela prostituta
paranaense
fodida por dez reais
pagos pelo gato da fazenda
agora deixo escorrer como memória
do que poderia ter sido
a cachaça em copo sujo
na dívida antes do trabalho
o trabalho manual nos canaviais
donde escapei como quem escapa
do perigo
sem explicação
por quem choram as casuarinas
Quando o poeta Bandeira Tribuzi morreu,
seu amigo, ex-presidente da República,
dedicou-lhe um artigo de jornal
Deparei-me com o artigo
anos antes de ser escrito
numa antologia de poemas
Quando o cineasta Glauber Rocha morreu,
seu amigo, ex-governador do Maranhão,
dedicou-lhe uma homenagem
Vi a morte de Glauber antes
num poema de Gullar
– mesmo antes de nascer o poema
pois Gullar estava à espera
daquele ônibus Rio Comprido-Leblon
Nos dias que antecederam a possível visita
de D. Pedro II aos gordurosos de Alcântara
muitos doces e licores foram preparados
Estavam todos lá, os frescos licores
os doces em compotas. Experimentei
na cozinha, nos porões de um casarão
tempos depois. Foi quando soube
que o Imperador não andaria
sobre aquelas ruas retilíneas
Tudo está escrito impunemente
No Maranhão, no Brasil, na América do Sul
Talvez por falta de um bom roteiro
ou de uma antologia que faça chorar as casuarinas
resta, de tudo, a imagem de loucos e doentes
com seus guarda-chuvas
nas escadarias da Igreja do Carmo
§
Boudelairevasé
Teus eixos espaciais
talvez sejam Cabos da Boa-Esperança.
As noites um único detalhe,
como descrição da nossa estirpe de origem.
A cidade, a viagem,
temas poéticos
encontrados na Ilha da Reunião.
Tormenta é apenas volume
do rádio trivial de sintonia Negra.
§
Ecologia íntima
Planta tua cara verde musgo
Enfia o corpo num buraco
Deixa nascer galhos pousar pássaros
Os braços como duas grandes folhas
As pernas bebendo água
Cabeça solta olhos fixos
Cu pra não caber uma palavra
Planta tuas raízes rasas no calcário
(de Paisagens possíveis)
.
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário