domingo, 20 de dezembro de 2015

I

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silencio
a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das casas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério

 – E o poema faz-se contra a carne e o tempo.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996

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