sábado, 13 de maio de 2017

Olga Savary



Olga Savary é uma poeta e prosadora brasileira, nascida em Belém do Pará em 1933. Estreou com a coletânea de poemas Espelho provisório (1970), que recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro como revelação do ano.



A ele se seguiriam Sumidouro (1977) – que receberia o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte naquele ano, e ainda Altaonda (1979), Magma (1982), Natureza viva (1982), Linha d'água (1986), Berço esplêndido (1987), Rudá (1994), Éden Hades (1995) e Morte de Moema (1996), entre outros. Seus poemas seriam reunidos no volume Repertório selvagem (1998).

É dona de uma voz lírica forte, mas de um lirismo algo seco, angular, que a liga a mulheres tão diferentes entre si quanto Francisca Júlia, Gilka Machado, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Hilda Hilst, Marly de OliveiraOrides Fontela ou Lourdes Teodoro. As trincheiras entre tradição e experimentação do pós-guerra legaram tais poetas muitas vezes ao silêncio. É de se esperar (de esperança), que a revalorização das obras de homens e mulheres (já mortos) como Hilda Hilst e Roberto Piva alcance alguns de nossos melhores líricos ainda vivos, como Olga Savary e Leonardo Fróes. 

--- Ricardo Domeneck

§

POEMAS DE OLGA SAVARY

Caiçuçáua

Sempre o verão
e algum inverno
nesta cidade sem outono
e pouca primavera:

tudo isto te vê entrar
em mim todo inteiro
e eu em fogo vou bebendo
todos os teus rios

com uma insaciável sede
que te segue às estações
no dia aceso.

Em tua água sim está meu tempo,
meu começo. E depois nem poder ordenar:
te acalma, minha paixão.

§

Água água

Menina sublunar, afogada,
que voz de prata te embala
toda desfolhada?

Tendo como um só adorno
o anel de seus vestidos,
ela própria é quem se encanta
numa canção de acalanto
presa ainda na garganta.

§

Ycatu*

E assim vou
com a fremente mão do mar em minhas coxas.
Minha paixão? Uma armadilha de água,
rápida como peixes,
lenta como medusas,
muda como ostras.


(*do tupi: água boa)

§

Pitúna-Ára

Exilada das manhãs,
de noite é que me visto.

Caminho só pela casa
e o viajar na casa escura
faz soar meus passos mudos
como em floresta dormida.

Me vêem, eu que não me vejo,
as coisas — de corpo inteiro.

O real está me sonhando,
o real por todo lado.
Não sou eu que vivo o medo;
em seu tapete de sombras,
por ele é que sou vivida.

Aonde me levam estes passos
que não soam e que não vão:
às armadilhas do vôo
como a paisagem no espelho
espatifado no chão?

O escuro é tanque de limo
para minha sombra escolhida
pela memória do dia.
Deixo o mel e ordenho o cacto:
cresço a favor da manhã.

§

David

Não sendo bicho nem deus
nem da raiz tendo a força
ou a eternidade da pedra,
o poeta nas palavras
põe essa força de nada:
sua funda é o poema.

§

Altaonda

     a Carlos Drummond de Andrade

Alta onda,
Altaonda, constrói o teu retrato
de raro sal de ferro, violento,
e esta imagem me invadindo as tardes,
eu deixando, certo certo
contaria todos os meus ossos.

Então é isso:
o rigor da ordem sobre o ardor da chama
de história simples com alguma coisa de fatal,
estátua banhada por águas incansáveis.
tigre saltando o escuro
nos degraus da escada, apenas pressentido.
este ir e vir sobre os passos dados,
rua sem saída, esbarro no muro,
Altaonda, diz teu silêncio,
um silêncio ao tumulto parecido,
um mistério que é teu signo e mapa
sumindo no fundo do mar.

§

Sextilha Camoniana

Daqui dou o viver já por vivido.
Quero estar quieta, sozinha agora,
igual a uma cobra de cabeça chata,
ficar sentada sobre os meus joelhos
como alguém coagulado em outra margem.
Daqui dou o viver já por vivido.

§

Saturnal

Paraíso é essa boca fendida de romã
— bagos de vida,

paraíso é esse mistério de água ininterrupta
fluindo do terminal das coxas,

é a vulva possuída-possuindo
violáceo cacho de uvas,

é esse dorso de vinho navegável
atocaiado para um crime.

§

Pele

Um favo de mel na boca,
um torrão de sal na anca
roubam para a pele
o calor de animais
simples e vorazes, soltos
como numa catedral,

pele de asno,
pele de mel,
pele de água.

§

Mapa de esperança

Vinha pisando sobre toda a praia,
o sangue quieto — ou quase quieto —,
os pensamentos leves como espumas
e os cabelos soltos como nuvens.

Trágica como princesa de elegia,
meu estandarte é o desespero,
minha bandeira, indecisão.

Ainda assim, alegria, te festejo.

§

Limite

Ausente e lassa, queria
estar pisando
a areia fina de Arraial do Cabo,
a areia grossa de Amaralina,
em Goiás Velho urdir a tarde
com Bernardo Elis e Cora Coralina,
farejar
cheiro de candeia por toda Ouro Preto...
mas estou presa à molduras de todos os meus retratos.

§

Uma cena

Vês acordada como em sonho
o sonho mau tal fosse belo
— o belo horror do real
que nem consciência nítida
ou lúcida, clara, exata,
não como é visto sol a pino
ou através da água,
como quem vê dentro do mar
ou através de um vidro fosco,
mais, no fundo de um espelho,
não o que mostra a imagem
mas aquele que a deforma
inteiro fora de foco.

§

Outra cena

Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que acordada
e de frente vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.

§

Nome

Tu, em tudo presença,
vibrar de asa,

eu, que nem nome tenho,
jamais nua de água,

tu, felicidade do corpo
embasado em brasa,
      
eu, sequer lembrança,
mero eco na sala,

tu, veneno curare
— e eu é que me chamo naja?

§

Maíua*

Velame e quilha, proa e popa,
as velas deflagradas e da amurada
vê-se a romper as águas o madeirame.

Amo esta incerteza com que me sagras
e o belo horror do abismo: amor,
sempre o terror do ter, não tendo.


* (do tupi)  bicho do fundo do rio, boto encantado.

§

Yruáia*

Par abissal
num mar em fúria
eis-nos tangidos:
navio alado.

Amo este começo de água
lá onde és roxo
e não te escondes, te dás
sem te entregares nunca

(mas se não te entregas,
então quando?)
Amo este início de água,

água onde começas
quando em ti levanta
este levante de pássaros.


*(do tupi): canal que não seca.

§

Acomodação do desejo III


Deito-me com quem é livre à beira dos abismos
e estou perto do meu desejo.

Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,
dos lugares de água, dos regatos perdidos,
lá onde morremos de um vago êxtase,
de uma requintada barbárie estávamos morrendo,
lá onde meus pés estavam na água
e meu coração sob meus pés,

se seguisses minhas pegadas e ao êxtase me seguisses
até morrermos, uma tal morte seria digna de ser morrida.

Então morramos dessa breve morte lenta,
cadenciada, rude, dessa morte lúdica.

§

Nome

Diria que amor não posso
dar-te de nome, arredia
é o que chamas de posse
à obsessão que te mostra
ao vale das minhas coxas
e maior é o apetite
com que te morde as entranhas
este fruto que se abre
e ele sim é que te come,
que te como por inteiro
mesmo não sendo repasto
o fruto teu que degluto,
que de semente me serve
à poesia.

§

Sensorial

Íntima da água eu sou por força,
mar, igarapé, rio ou açude,
pela água meu amor incestuoso.



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