quarta-feira, 4 de janeiro de 2017
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
Mia Couto in Tradutor de Chuvas, 2011
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
Mia Couto in Tradutor de Chuvas, 2011
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Manoel de Barros
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Manoel de Barros
Entre os temas tabu dos nossos dias está a ignorância. Parece que falar da ignorância coloca logo quem o faz numa situação de arrogância intelectual, o que inibe muita gente de a nomear. Mas não há muita razão para se enfiar essa carapuça, tanto mais que o problema é enorme e está agravar-se e a assumir novas formas, socialmente agressivas. Acompanha outro tipo de fenómenos como o populismo, a chamada “pós-verdade”, a circulação indiferenciada de notícias falsas, e, o que é mais grave, a indiferença sobre a sua verificação. Não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família. É, repetindo uma fórmula que já usei, como se de repente se deixasse de ir ao médico, e se passasse a ir ao curandeiro.
Uso aqui uma noção utilitária de ignorância que pode ser simplista, mas que serve. Ser ignorante é não ter os instrumentos para se mover no mundo que nos rodeia, ser sujeito mais do que ser actor, não conseguir atingir o empowerment que é suposto se poder ter para se actuar conforme as circunstâncias, de modo a crescer, ser capaz, viver uma vida qualificada e tirar dela uma experiência enriquecedora, controlando-se a si próprio tanto quanto é possível, e não menosprezando as condições para se ser feliz, “habitualmente” feliz. Isto é muito Dale Carnegie, mas serve, não é preciso complicar à partida.
Percebe-se, usando esta definição, que a ignorância pode ser descrita como a pobreza, cujos efeitos e condições de superação são exactamente do mesmo tipo. A ignorância é uma forma de pobreza e o seu crescimento acentua a pobreza em geral e, mais do que a pobreza, a exclusão e a diferenciação social. É até um dos mecanismos mais eficazes para aumentar a distância entre pobres e ricos, e para estabilizar um status quo nos pobres, que, como a droga, tem efeitos de satisfação instantânea, de paraíso artificial, ou, se se quiser de “ópio do povo”.
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Faço uma distinção entre aquilo a que chamo “a antiga ignorância” e “a nova”. A antiga tem muito que ver com a baixa qualificação profissional, com a insuficiente escolaridade, com a má qualidade de muitas escolas, sem meios, sem professores preparados, com o analfabetismo funcional. É um factor do nosso atraso e ajuda a potenciar os efeitos perversos da nova ignorância, mas não a explica por si só.
Contentamo-nos muito com a diminuição estatística da antiga ignorância e isso em Portugal é mais do que compreensível. O sucesso da escola, e da escolarização, o ensino para adultos, as melhorias verificadas em disciplinas como Português e Matemática são instrumentos fundamentais, entre outras coisas, para a mobilidade social, mas, mesmo que tenhamos, como agora se diz, as gerações mais qualificadas, estamos cegos quanto ao crescimento da nova ignorância, não só em aliança e em tandem com a antiga, mas assumindo novas formas e efeitos. O facto de haver um modismo tecnológico e se confundir a utilização de gadgets, aliás bastante rudimentar, com um novo saber, que implica novas competências, esconde essa regra básica de que as literacias para os usar vêm do sistema escolar a montante e a possibilidade de os usar para uma melhoria social só existe a jusante se acompanhar uma evolução social que não se está a verificar. Mais do que uma evolução, há uma involução.
A antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa ilusão. É por isso que a antiga ignorância era vista como um problema da sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.
O primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de “presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam adictivas como a droga. Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida.
Nada é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias, vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia. Que vida pode sobrar?
Ainda há-de alguém convencer-me que este comportamento lá por usar tecnologias modernas representa uma vantagem e não uma patologia. Faz parte de sociedades em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver. E se olharmos para os produtos de tanta página de Facebook, de tanta mensagem, de tanto comentário não editado, de tanta “opinião” sobre tudo e todos, escritas num português macarrónico e cheio de erros, encontramos fenómenos de acantonamento, de tribalização, de radicalização, de cobardia anónima, de ajustes de contas, de bullying num mundo que tem de ser sempre excitado, assertivo e taxativo. Um dos maiores riscos para o mundo é ter um presidente dos EUA que governa pelo Twitter como um adolescente, com mensagens curtas, sem argumentação, que, para terem efeito, têm de ser excessivas e taxativas.
José Pacheco Pereira, 31.12.2016 Público
domingo, 1 de janeiro de 2017
Penso que neste momento
talvez nada no universo pensa em mim,
que apenas eu me penso,
e se agora morresse,
nada, nem eu me pensaria.
E por aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Só eu próprio me sustenho, e me abandono.
Contribuo para cobrir de ausência tudo.
Talvez seja por isso
que pensar num homem
é o mesmo que salvá-lo.
Roberto Juarroz, in Poesía Vertical.
talvez nada no universo pensa em mim,
que apenas eu me penso,
e se agora morresse,
nada, nem eu me pensaria.
E por aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Só eu próprio me sustenho, e me abandono.
Contribuo para cobrir de ausência tudo.
Talvez seja por isso
que pensar num homem
é o mesmo que salvá-lo.
Roberto Juarroz, in Poesía Vertical.
Há pouco mais de duas semanas (24/11/2016) faleceu, em Madrid, o espanhol Fernando Macarro Castillo que, como poeta, usou o nome de Marcos Ana (1920-2016). Encarcerado pelo regime franquista, com pouco mais de 15 anos, pela sua actividade ao lado dos republicanos, foi libertado apenas 23 anos depois, em 1961, por pressão da Amnistia Internacional e de vários intelectuais estrangeiros. É desse tempo de prisão o seu mais conhecido poema Decidme como es un arbol, escrito com 22 anos de idade. Que passamos a traduzir, fazendo-o acompanhar pela leitura do Poeta, em vídeo, no início deste poste.
Decidme como es un arbol
Dizei-me como é uma árvore,
contai-me como chilreia um rio
coalhado de pássaros,
falai-me do mar,
do cheiro amplo do campo,
das estrelas, falai-me do ar,
descrevei-me um horizonte
sem limites nem chaves
como a cabana de um pobre,
dizei-me como é um beijo de mulher,
dai-me o nome do amor,
porque já não o lembro.
Será que as noites ainda se perfumam
de enamorados sobre a lua,
trémulos de paixão,
ou já só resta um abismo?
A luz coada da masmorra
e a canção da minha rosa
de 22 anos, já me esqueço
da dimensão das coisas,
sua cor e aroma,
escrevo às cegas sobre o mar,
o campo e o bosque,
digo bosque
e sinto que perdi a geometria da árvore.
Falo por falar sobre os assuntos
que os anos me fizeram esquecer,
e nem posso já continuar: ouço perto
os passos do carcereiro.
O rouxinol volta
e volta a cantá-lo - repete.
E não se cansa nunca.
...
Água que se faz cristal,
pirilampos que se apagam,
pela noite fria nada mais existe.
Chiyo-Ni (1703-1775)
Nota: poetisa precoce, Chiyo-Ni fazia haiku desde a sua meninice, vindo a professar como monja budista, na maioridade.
Pensar é uma incompreensível teimosia,
qualquer coisa como prolongar o perfume de uma rosa
ou perfurar com raios de luz
a espessura das trevas.
É também ultrapassar alguma coisa
através de uma insensata manobra
desde um barco acidentalmente submerso
até a uma navegação sem barcos.
Pensar é insistir
por uma solidão sem regresso.
Roberto Juarroz (1925-1995), in Poesia Vertical (1987).
qualquer coisa como prolongar o perfume de uma rosa
ou perfurar com raios de luz
a espessura das trevas.
É também ultrapassar alguma coisa
através de uma insensata manobra
desde um barco acidentalmente submerso
até a uma navegação sem barcos.
Pensar é insistir
por uma solidão sem regresso.
Roberto Juarroz (1925-1995), in Poesia Vertical (1987).
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