Olinda Beja é uma poeta e romancista de nacionalidade portuguesa, mas nascida em Guadalupe, São Tomé e Príncipe, a 8 de dezembro de 1946. Publicou as coletâneas de poemas Bô Tendê? (1992), Leve, leve (1993), No País do Tchiloli (1996) e Água crioula (2002), entre outros, assim como os romances 15 dias de regresso (1994) e A pedra de Villa Nova (1999). A autora vive em Viseu, Portugal.
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POEMAS DE OLINDA BEJA
Travessia
pus a mesa no meio do quintal
Molembu se chamava a roça
regada com sangue de meus antepassados
invoquei os meus mortos
os espíritos todos que me antecederam
chegaram primeiro os oriundos do sul do Sahara
do Gabão, da Libéria, da Mina
outros vieram das ilhas áridas
outros das terras de D’Jinga
e outros ainda para lá do Ìndico
união de muitas raças e credos e danças
fado, marrabenta, puíta , manipuri
festa orgíaca que Sum Tômachi, o curandeiro
se comprometeu a montar
por fim vieram alguns do ocidente
lívidos e trémulos como a branca neve do seu longe
como o minuete das suas danças de salão
e o choro da guitarra e da viola
a mesa estava posta
iguarias atapetavam o robusto
tronco de mampiam que há muito alguém retangulou
e os espíritos todos provaram e se deliciaram
cozido de banana, molho no fogo
vuadô travessá, pescada com todos
angu, d’jogó, cozido à portuguesa
cachupa, funge, muamba,
arroz doce, canjica, paracuca
e os acepipes eram por todos sobejamente conhecidos
cafukas arderam até à exaustão da luz
tremelicaram vozes em cânticos hossânicos
em uníssonas línguas que se enovelaram felizes
e a torre de Babel ergueu-se una e majestosa
num pedaço de chão esquecido dos deuses
minha avó Dua espelhou seu rosto de água
em meu ombro anguloso e ressequido
e feliz adormeceu
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Dádiva
Trago-te aromas de água
frutos gentes pele escura
gotículas de seiva vidas capinadas
oquês barrentos emprenhados
de pau-canela e cajamanga
trago-te aromas de corpo-alma
rituais de puíta e Danço-Congo
insónias tropicais
melodias de portos inéditos
palavras de gengibre repartido
por bocas onde escorre
abacaxi selvagem
trago-te trilhos de matos ainda
não descobertos
especiarias ondas de poemas
trago-te o que a minha ilha oferece
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Eis-me aqui
Estou aqui
a contar-te dos caminhos que percorro
velhos estreitos esventrados
caminhos de sulcos e de cabras onde
nossos avós colheram pão de côdea dura
estou aqui
a contar-te dos cheiros doces e acres
dos frutos tropicais
cheiros que se foram confundindo no sangue
que se afundou em docas e mares mas emergiu
mais vermelho que o chão da nossa terra
estou aqui inteira viva irrequieta como pássaro
que acasala no equilíbrio de um ramo
e como tu quero ferir meus pés
no lençol de pedras que atapeta o ôbô
inundar de algas azuis o corpo reflectido
no espelho das calemas
estou aqui para escutar o vento no zinco dos casebres
e exorcisar os medos que vagueiam na linguagem do povo
estou aqui como tu
borboleta tricolor que pousa no eco das muralhas
e morre a ouvir histórias de um país calcinado.
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Solidão
Na minha terra há um rio
que nunca vai ter ao mar
trago-o eu dentro do peito
e o meu corpo é o seu leito
onde ele se pode espraiar
na minha terra há um pranto
de uma mãe que o não secou
escorre nas minhas veias
como o mar por entre as areias
que o oceano afundou
na minha terra há um porto
com barcos por atracar
as amarras trago-as eu
no destino que me deu
outro porto p'ra embarcar
na minha terra há um mundo
diferente deste onde estou
mas não o trago comigo
ficou para meu castigo
no canto do ôssobô...
§
Quem somos?
O mar chama por nós, somos ilhéus!
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma
somos pescadores-marinheiros
de marés vivas onde se escondeu
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu
a nossa ilha balouça ao sabor das vagas
e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória...
Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar
ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada
continuaremos a plantar café cacau
e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão
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Por ti
Por ti espero naquela roça grande
no perfume do izaquente
no sopro do vento irrequieto
no riso da montanha misteriosa.
Por ti espero junto ao secador
que meu avô ajudou a construir
e o cheiro do cacau
invade o corpo
que acalenta a esperança
de rever-te.
Espero sentada
no caminho que vai até à Grota
e serpenteio
a estrada de Belém onde as fruteiras
espreitam o sol
e o vianteiro.
Por ti espero
na calma do poente
entre a ânsia
e o amor que me consome.
A tarde vai caindo e nostalgicamente
arrastando o meu dilúvio de ternura.
Por ti espero ainda
no breu da noite imensa
na raiva que a paixão derrama e sangra
e é o tam-tam da madrugada que me obriga
a apagar da memória
a tua imagem
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Raízes
Há rumores de mil cores enfeitando o espaço
de gorjeios infantis
transportando aquele abraço de anãs juvenis
árias que perduram na mensagem
da nossa voz e da nossa imagem.
São rumores de tambores
repercutindo a esperança de olhares inquietos
toada de lembranças
liturgia de afectos.
São rumores maternais
presos à terra que nos diz
que só o maior dos vendavais
arranca da árvore a raiz.
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Negba
Passas dengosa
perfumosa
exibindo olhares lascivos
às multidões do sexo.
Balouças
a flor de lótus
que escondes no teu corpo
por entre a garridez
de tecidos virginais
e vais
deixando pólen
gostoso
africanoso
em detalhes colíricos
de afectuosas manhãs
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Ébano
Noite sem lua no deserto que comprime
a exatidão das coisas
paradoxo ambíguo de solidão estática do astro
inigualável
noite de breu no areal sem fim
do eterno além-fronteira
onde o nada vive acorrentado à esfinge
da nossa escuridão
flutuam estrelas mas a lua
não vem na mesma rota
das quimeras
escondeu o rosto na lagoa
onde perpétuo repousa
o despertar inviolável
da nossa cor de ébano
§
Ilha
Tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de corais e praias sem fim
que chora e repete na longa distância
os dias e as horas que me deu na infância
tenho as canoas correndo na alma
e bebo em orgias vinho de palma
na roça à noite varrendo o terreiro
eu falo e discuto com piadô feiticeiro
santo é o seu nome e santa é a gente
que as ilhas povoam bendito o seu ventre
tenho uma ilha por dentro de mim
cheia de floresta de mato capim
que chora e repete no porto de abrigo
os dias e as horas que eu trouxe comigo
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