sábado, 4 de março de 2017

VI

     Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
     a harpa e a loucura desperta a pura espada
     em pleno sangue. Ó vasto,
     amargo e límpido mês interior onde a graça
     se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
     e longo varão de música. Escada de seiva
     entre arbustos de estrelas
     e cubos de sal perpetuamente ardendo.
     — Por ti, mês feliz de confusão e génio,
     eu levanto minha húmida boca
     até ao ar e ao vinho, levanto
     minha obscura pedra por vias de tormento
     e instinto até
     ao barro vermelho do céu, ao espasmo
     violento e sagrado das palavras.

     Mês por onde subo fundamente agitado
     em meu coração de argila, em minhas veias
     de pequena infância espantada e grata.
     E subindo me incendeio e consumo.
     Mês das mãos purificadas.
     Delicado mês para uma corola
     de nuvem, um vivo transporte
     entre coxas e mamas.
     Em lama e areia se descobre
     o pensamento, se perde a memória, se possui
     uma estreita palavra virgem
     e extrema.

     Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda
     música. Arde, vinho. Carne,
     ave, grande mar, grande estátua fria,
     grande sorriso desfeito na face da solidão.
     Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz
     das catedrais de resina e o flanco
     terrível e doce das montanhas
     e o amor irmão da morte e da alegria.
     Mês do poema, substância de Deus servida
     como ceia e primeira pedra no espaço
     da minha angústia,
     do meu encanto.
     Mês da aliança, tempo
     tremendo da inocência onde a lua desce
     suas raízes ferozes
     e a morte anuncia seus primeiros sinais
     de glória.

     — E eu dormia. O sangue atravessava a noite
     como cantando baixo.
     Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam
     no linho com o tremor comprido das veias.
     Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia,
     vibrava na testa como o beijo da loucura.
     — Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto,
     o perdão nascia das formas,
     e por todas as coisas corria o sopro alucinado
     e redentor
     de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996

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