terça-feira, 21 de março de 2017

VII

     A manhã começa a bater no meu poema.
     As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
     líricas.
     Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
     Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
     o rodopio das rosáceas do meu
     poema batido pela revelação das coisas.
     Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
     pelo sangue.
     Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
     rapidamente transfigurada.
     Batem nas portas das palavras,
     sobem as escadas desta intimidade.
     É como uma casa, é como os pés e a as mãos
     das pessoas invasoras e quentes.

     Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
     deitado de costas, com o nariz que aspira,
     a boca que emudece,
     o sexo negro no seu quieto pensamento.
     Batem, sobem, abrem, fecham,
     gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
     do poema.

     Uma inspiração fende lírios na minha testa,
     fende-os ao meio
     como os raios fendem as direitas taças de pedra.
     Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
     Uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
     Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem
     levitante,
     as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

     É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
     do poema. É Deus que rola e a morte
     e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
     à beira
     do povo que até mim separa os espinhos das formas
     e traz sua pureza aguda e legítima.
     — Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
     pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
     de música fria.

     — Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

     O poema dói-me, faz-me.
     O povo traz coisas para a sua casa
     do meu poema.
     Eu acordo e grito, bato com os martelos
     dos dias da minha morte
     a matéria secreta de que é feito o poema.

     — A manhã começa a colocar o poema na parte
     mais límpida da vida. E o povo canta-o
     enquanto crescem os campos levantados
     ao cume das seivas.
     A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
     do mundo.



     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996

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