segunda-feira, 31 de outubro de 2016



tomei um sorriso teu
                    dancei contigo em lajes de cristal
subi num beijo
                    e afundei no lago do teus olhos 
pedi o indizível
                    inclinas-te graciosa por um carinho infindável
quis o teu coração
                    e caíram de ti os frutos da solidão do céu.
fui dar ao teu azul
                    e no teu corpo ressoa o vento pela orla da floresta.

gritei:
               "amar-te até o tempo acabar!"

e do misterioso silêncio nocturno                     
responderam-me:
                               "Voa, sobre teu sonho!"

                     ... seguramente
Vem do sentir e do amar toda a matéria de um sonho
que se enclausura depois dentro de um poema,
imperturbável
para sempre! 


[tomei um expresso cheguei de foguete]

tomei um expresso
                    cheguei de foguete
subi num bonde
                    desci de um elétrico
pedi cafezinho
                    serviram-me uma bica
quis comprar meias
                    só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                    disparei um autoclisma
gritei "ó cara!"
                     responderam-me "ó pá!"

                     positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá



José Paulo Paes

[ Amamos o que não conhecemos, o já perdido.]

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredor.
Os antigos, que já não podem defraudar-nos,
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer,
 que não acabaremos de ler.
A recordação, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente, que sem duvida não existe para o afegão, 
para o persa ou o tártaro.
Os nossos antepassados, com os quais não poderíamos conversar
durante um quarto de hora.
As cambiantes formas da memória, 
que está cheia de esquecimento.
Os idiomas que apenas deciframos.
Algum verso latino ou saxónico, que não é outra coisa que um hábito.
Os amigos que não podem faltar-nos,
porque estão mortos.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diferente.
O xadrez e a álgebra, que eu desconheço.

Jorge Luís Borges

(trad. aj c.)

[ Amamos lo que no conocemos, ]

LO NUESTRO


   
     Amamos lo que no conocemos, lo ya perdido.
     El barrio que fue las orillas.
     Los antiguos, que ya no pueden defraudarnos,
     porque son mito y esplendor.
     Los seis volúmenes de Schopenhauer,
     que no acabaremos de leer.
     El recuerdo, no la lectura, de la segunda parte del Quijote.
     El Oriente, que sin duda no existe para el afgano,
     el persa o el tártaro.
     Nuestros mayores, con los que no podríamos conversar
     durante un cuarto de hora.
     Las cambiantes formas de la memoria,
     que está hecha de olvido.
     Los idiomas que apenas desciframos.
     Algún verso latino o sajón, que no es otra cosa que un hábito.
     Los amigos que no pueden faltarnos,
     porque se han muerto.
     El ilimitado nombre de Shakespeare.
     La mujer que está a nuestro lado y que es tan distinta.
     El ajedrez y el álgebra, que no sé.


Jorge Luis Borges

[ Aqui onde o exílio ]

Aqui onde o exílio
dói como agulhas fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio Andrade

[ Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos, ]

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

" ME ESTÁS ENSEÑANDO "

" Me estás enseñando a amar.
             Yo no sabía.
        Amar es ni pedir, es dar
             noche tras día.

        La noche ama al Día, el Claro
             ama a la Oscura.
        Qué amor tan perfecto y tan raro.
             Tú, mi ventura.

        El Día a la Noche, alza, besa
             sólo un instante.
        La noche al Día- alba, promesa-
             beso de amante.

        Me estás enseñando a amar.
             Yo no sabía.
        Amar es no pedir, es dar.
             Mi alma, vacía "

            Gerardo Diego  ( 1896-1987 )

" COSAS QUE NO SOPORTO EN UN POEMA "

 " Que suceda en Lisboa.
       Que se proponga ser original.
       Que hable de los dorados cuerpos de los etcétera.
       Que diga Espacio o Punto ( e incluso sin mayúsculas ).
       Que lleve algún versito
                                 metido para adentro, o abuse del azul.
       Que las manías de Cernuda emule.
       Que le pueda gustar a Octavio Paz.
       Que esté escrito en Valencia.
                                                     Que sea mío"


                 Miguel d´Ors.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

comparação

Tudo está
eternamente
escrito
(Spinosa)

Tudo está
eternamente
em Quito
(Uma Rosa)

Mário Cesariny

o jogo

Eu, sabendo que te amo
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997

pecados capitais

Cada vez que tive vontade e pude
entreguei-me à gula e à luxúria.
Com a preguiça vivo amancebada.
Só fui seduzida pela avareza
como meio para outros desvios.
Sempre me mostrei irada e soberba,
orgulhosa, arbitrária e teimosa.
Talvez por isso não sentisse inveja.
Tão segura de mim, tão inflexível,
não podia invejar nada nem ninguém.
Hoje, contudo, derrotada e só,
sem esperança e vencida, tão inútil,
sinto inveja de mim quando me amavas.


amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013

desenho infantil

I

Os animais no alvorecer, os gritos reflectidos num plafond mais denso da neblina e devolvidos aos chiqueiros, sob a forma de raios que fulminam o gado, para subir de novo como gritos à bruma impermeável e tornar a descer: na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso e a partir de si mesma.




carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001

O espelho

V
Uma pessoa tem um corpo,
um só, sozinho,
a alma já está farta
de ficar confinada dentro de uma caixa,
com orelhas e olhos
do tamanho de moedas,
feita de pele – só cicatrizes –
cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
para a cúpula do céu,
sobre um raio gélido,
até a uma rodopiante revoada de pássaros,
e ouve pelas paredes
da sua prisão viva
o crepitar de florestas e milharais,
o troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
como um corpo sem camisa:
nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
ao salão do baile,
quando não ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
vestida com outras roupas:
que se inflama enquanto corre
da tristeza à esperança;
pura e sem sombra,
como fogo, ela percorre a Terra,
deixa lilases sobre a mesa
para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não
Te aflijas por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar o teu aro de cobre,
corre com ele mundo fora
enquanto, em notas firmes
de tom alegre e frio,
em resposta a cada passo que deres,
a Terra soar em teus ouvidos.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975

[Piedade para finitos e infinitos,]

Piedade para finitos e infinitos,
memórias
talvez distorcidas, retorcidas,
mas que em qualquer lugar, onde quer que seja,
por vós mesmas cresceis
e p’ los vossos intrínsecos olvidos,
ervas, ervas, Manes, tardes nossas..

Limalhas de irídio, estilhaçados quartzos
na obscuridade que o inverno instila,
agudas escarpas
tornadas vãs p’ la violeta,
mas que a vós sempre chegam
a ervas, ervas-Manes…

Frívolos Jovens Manes,
silvos talvez gelados,
gemidos de elfos
em suaves suplícios
poa pratensis, poa silvestris,
retraídos movimentos e
escasso predomínio de verde: eis
que já aqui se convocam incitando, incitando,
assim, a que em amplos obnubilados prados
consoleis a violeta,
consolação roubada à violeta.

Oh, além, p’ los desfiladeiros,
poa pratensis, Manes, poa silvestris,
à não mais inconsútil túnica
do mundo a céu aberto
providenciareis? Ttsch, sst, zzt
Salvareis?




andrea zanzotto
trad. luís pignatelli
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

[ Cai rápido em minha alma... ]

Cai rápido em minha alma
o desejo de morrer
de infundir calma
no meu espantoso ofício de escrever
para pôr em som o quanto calo
e a quem não responde perguntar
Com o sangue de Deus na crista
eu sei que sou um galo

Esta é a minha mão das palavras
Sua-me em português a mão
Já me sangra de golpear em vão
Meter alguém as cabras
no curral por ser humano
de uma só mão

Se fosse mudo gritaria
mudo de espanto
Já me não resta pranto
nesta mão  minha
E se quer alguém o meu ofício
de mutismo e grito
que me arranque pela raiz
Deus e a caneta que é o mesmo

Deixaram-me ferido
os cantos e os credos
Agonizo aqui limpo de pecado
muito amei e chorei demasiado
suspeitando dos meus dedos


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997

[ Um rasgão de luz sobre a pele, ]

IV

Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento
quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.

A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia.

O sol enterra-se nas areias.

Viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais
são formas etéreas que se me colam ao rosto.

O que morrer, quase não faz falta...

Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
Mas um homem em cujo coração esteja concentrada
toda a fúria de viver, será um homem feliz?

Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.

Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.

Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer,
não me lembro de mais nada.

Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos,
atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto -
atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.
O que vejo já não se pode cantar.
Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos
acendo o firmamento da alma.

Espero que o vento passe... escuro, lento -
então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.


al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997