quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O espelho

V
Uma pessoa tem um corpo,
um só, sozinho,
a alma já está farta
de ficar confinada dentro de uma caixa,
com orelhas e olhos
do tamanho de moedas,
feita de pele – só cicatrizes –
cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
para a cúpula do céu,
sobre um raio gélido,
até a uma rodopiante revoada de pássaros,
e ouve pelas paredes
da sua prisão viva
o crepitar de florestas e milharais,
o troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
como um corpo sem camisa:
nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
ao salão do baile,
quando não ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
vestida com outras roupas:
que se inflama enquanto corre
da tristeza à esperança;
pura e sem sombra,
como fogo, ela percorre a Terra,
deixa lilases sobre a mesa
para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não
Te aflijas por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar o teu aro de cobre,
corre com ele mundo fora
enquanto, em notas firmes
de tom alegre e frio,
em resposta a cada passo que deres,
a Terra soar em teus ouvidos.



arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975

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