sábado, 15 de outubro de 2016

[Acontece que me canso de ser homem.]

Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de origem e de cinza.

O cheiro das barbearias faz-me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.

Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971

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