POEMAS DE ANA PAULA TAVARES
Alphabeto
Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes
§
As coisas delicadas tratam-se com cuidado
Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo acesso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado
Rapariga
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseira pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi —
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranqüilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes
§
Canto de nascimento
Aceso está o fogo
prontas as mãos
o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.
As mãos criam na água
uma pele nova
panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar
Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças deleite
que o vento trabalha manteiga
a lua pousada na pedra de afiar
Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas
As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras
Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio
enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.
§
O cercado
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
§
A abóbora menina
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságüem todos os rapazes.
§
A mãe e a irmã
A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
§
Adorno
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.
.
.
Alphabeto
Dactilas-me o corpo
de A a Z
e reconstróis
asas
seda
puro espanto
por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem, pequenas
as cicatrizes
§
As coisas delicadas tratam-se com cuidado
Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo acesso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado
§
Rapariga
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseira pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi —
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranqüilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes
§
Canto de nascimento
Aceso está o fogo
prontas as mãos
o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.
As mãos criam na água
uma pele nova
panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar
Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças deleite
que o vento trabalha manteiga
a lua pousada na pedra de afiar
Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas
As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras
Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio
enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.
§
O cercado
De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó
Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado
De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias
Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
§
A abóbora menina
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságüem todos os rapazes.
§
A mãe e a irmã
A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
§
Adorno
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.
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