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POEMAS DE MARLY DE OLIVEIRA
POEMAS DE MARLY DE OLIVEIRA
Cerco da primavera
Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.
Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.
Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.
Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.
Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.
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A suave pantera (excertos)
1. Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
- em silêncio e lisura -
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.
2. É suave, suave, a pantera,
mas se a quiserem tocar
sem a devida cautela,
logo a verão transformada
na fera que há dentro dela.
O dente de mais marfim
na negrura toda alerta,
e ser de princípio a fim
a pantera sem reservas,
o fervor, a força lúdica
da unha longa e descoberta,
o êxtase de sua fúria
sob o melindre que a fera,
em repouso, se a não tocam,
como que tem na singela
forma que não se alvoroça
por si só, antes parece,
na mansa, mansa e lustrosa
pelúcia com que adorna,
uma viva, intensa jóia.
4. Mas é no amor que essa fúria
alcança de si o máximo.
À parte qualquer luxúria,
à parte a falta de tato,
se se alça e ganha a medida
de seu corpo todo casto,
há que ver-lhe a esbelta e lisa
figura de todo lado,
quando toda se descobre
- como um cristal se estilhaça –
amando a vida, ai, amando
a vida que passa, passa.
Tão projetada num sonho,
nem se diria uma fera,
contida, casta e polida,
com tanto furor interno.
5. Com tanto furor interno,
quem a livra, quem a livra
de ser o seu próprio inferno,
de, pelo fogo da ira,
consumir-se estando quieta,
de acabrunhar-se sozinha.
Nem se diria uma fera!
Nem se diria rainha!
As patas pisando o chão
têm uma dura leveza,
os pelos brilhando de ônix,
- de si mesma prisioneira –
caminha de um lado a outro
como pelo mundo inteiro.
Há esmeraldas de silêncio
nos seus olhares acesos.
11. Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.
13. A fome de um bicho
- e mais se é pantera –
não tem o limite
que nem gente tivera.
Não é como a fome
violenta, direta,
subjetiva, do homem,
a fome da fera.
A fome de um bicho
é cruel e eterna,
e toda inconsciente,
com uma força interna.
É fome indistinta
espalhada nela,
com íntima fúria
que ela não governa.
14. A liberdade da pantera
está justamente nisto:
que nem ela se governa.
e o que sucede é imprevisto.
Essa a vantagem da fera:
uma força que ela abriga,
inconsciente, dentro dela
-sob a aparência tranqüila –
e de repente se revela,
mas numa espécie de fúria,
que atinge inclusive a ela,
mas numa espécie de luta
que é o modo que tem a cólera
de mostrar-se numa fera
e que é a sua única forma
de ser pura além de bela.
16. Além de precisa é ubíqua,
outra vantagem mais forte.
Por toda parte é sensível
sua graça, como um broche,
ou como coisa pousada
e em si mesma repentina:
os olhos onde violetas
cobram cores agressivas,
a cauda suspensa e lisa
como nuvem sossegada,
não solta, não qualquer nuvem,
nuvem presa como uma asa,
o corpo todo concreto,
todo animal, perecível,
e mais uma ânsia por dentro,
de ser livre, livre, livre.
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Numa rua de Amsterdam
Em Amsterdam na Diezestraat 6
alguém me espera alguém me quer
alguém dá vida e brilho à minha vida
tão dividida que mal se define entre
aquilo e o que.
Alguém me espera entre tulipas
alguém me espera entre folhas tombadas
sob o sol sob a chuva sob o frio
alguém me espera espera espera.
Alguém constrói a sua casa
como artesã-abelha delicada;
sobre o sofá um quadro, uma explosão,
que cada dia mais entendo, cada ano mais,
e outros móveis, cortina,
cozinha, um banheiro
todo branco.
E para mim um quarto, uma cama,
um edredom azul, uma escova,
papéis e muitos outros objetos,
telas tintas um pedaço de ferro,
outro de ouro, outro de aço.
Alguém de longe me acena
com uma lareira acesa.
§
Psicologia da lembrança
Tão fácil deixar o quarto assim:
lenços roupas empilhadas
tênis papéis por todo lado,
os livros do colégio, um copo d’água,
mas um jeito de amar fala mais alto
e vai fazer a cama, renovando os
lençóis; é tão forte o calor, dói
a coluna, mas nem dói mais, quando
sonolenta ela entra
e sorri sonolenta, um anjo
pousado um momento
no meu ombro; agora a cama está sempre
feita, o armário sempre arrumado, ela
longe longe longe numa
moldura mais que perfeita, e o
dia inteiro olho seu quarto, os quadros,
faz tanta falta aquela desordem!
ela está lá e está aqui
dentro de mim,
e quando sequer falamos
ao telefone é como se nem
entre nós um oceano
houvesse, como se nem.
.
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