domingo, 3 de abril de 2016



§

POEMAS DE MARLY DE OLIVEIRA

Cerco da primavera

Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.

Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.

Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.

Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.

Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.

§

A suave pantera (excertos)

1. Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
- em silêncio e lisura -
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.

2. É suave, suave, a pantera,
mas se a quiserem tocar
sem a devida cautela,
logo a verão transformada
na fera que há dentro dela.
O dente de mais marfim
na negrura toda alerta,
e ser de princípio a fim
a pantera sem reservas,
o fervor, a força lúdica
da unha longa e descoberta,
o êxtase de sua fúria
sob o melindre que a fera,
em repouso, se a não tocam,
como que tem na singela
forma que não se alvoroça
por si só, antes parece,
na mansa, mansa e lustrosa
pelúcia com que adorna,
uma viva, intensa jóia.

4. Mas é no amor que essa fúria
alcança de si o máximo.
À parte qualquer luxúria,
à parte a falta de tato,
se se alça e ganha a medida
de seu corpo todo casto,
há que ver-lhe a esbelta e lisa
figura de todo lado,
quando toda se descobre
- como um cristal se estilhaça –
amando a vida, ai, amando
a vida que passa, passa.
Tão projetada num sonho,
nem se diria uma fera,
contida, casta e polida,
com tanto furor interno.

5. Com tanto furor interno,
quem a livra, quem a livra
de ser o seu próprio inferno,
de, pelo fogo da ira,
consumir-se estando quieta,
de acabrunhar-se sozinha.
Nem se diria uma fera!
Nem se diria rainha!
As patas pisando o chão
têm uma dura leveza,
os pelos brilhando de ônix,
- de si mesma prisioneira –
caminha de um lado a outro
como pelo mundo inteiro.
Há esmeraldas de silêncio
nos seus olhares acesos.

11. Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.

13. A fome de um bicho
- e mais se é pantera –
não tem o limite
que nem gente tivera.
Não é como a fome
violenta, direta,
subjetiva, do homem,
a fome da fera.
A fome de um bicho
é cruel e eterna,
e toda inconsciente,
com uma força interna.
É fome indistinta
espalhada nela,
com íntima fúria
que ela não governa.

14. A liberdade da pantera
está justamente nisto:
que nem ela se governa.
e o que sucede é imprevisto.
Essa a vantagem da fera:
uma força que ela abriga,
inconsciente, dentro dela
-sob a aparência tranqüila –
e de repente se revela,
mas numa espécie de fúria,
que atinge inclusive a ela,
mas numa espécie de luta
que é o modo que tem a cólera
de mostrar-se numa fera
e que é a sua única forma
de ser pura além de bela.

16. Além de precisa é ubíqua,
outra vantagem mais forte.
Por toda parte é sensível
sua graça, como um broche,
ou como coisa pousada
e em si mesma repentina:
os olhos onde violetas
cobram cores agressivas,
a cauda suspensa e lisa
como nuvem sossegada,
não solta, não qualquer nuvem,
nuvem presa como uma asa,
o corpo todo concreto,
todo animal, perecível,
e mais uma ânsia por dentro,
de ser livre, livre, livre.

§

Numa rua de Amsterdam

Em Amsterdam na Diezestraat 6
alguém me espera alguém me quer
alguém dá vida e brilho à minha vida
tão dividida que mal se define entre
aquilo e o que.

Alguém me espera entre tulipas
alguém me espera entre folhas tombadas
sob o sol sob a chuva sob o frio
alguém me espera espera espera.

Alguém constrói a sua casa
como artesã-abelha delicada;
sobre o sofá um quadro, uma explosão,
que cada dia mais entendo, cada ano mais,
e outros móveis, cortina,
cozinha, um banheiro
todo branco.

E para mim um quarto, uma cama,
um edredom azul, uma escova,
papéis e muitos outros objetos,
telas tintas um pedaço de ferro,
outro de ouro, outro de aço.
Alguém de longe me acena
com uma lareira acesa.

§

Psicologia da lembrança

Tão fácil deixar o quarto assim:
lenços roupas empilhadas
tênis papéis por todo lado,
os livros do colégio, um copo d’água,
mas um jeito de amar fala mais alto
e vai fazer a cama, renovando os
lençóis; é tão forte o calor, dói
a coluna, mas nem dói mais, quando
sonolenta ela entra
e sorri sonolenta, um anjo
pousado um momento
no meu ombro; agora a cama está sempre
feita, o armário sempre arrumado, ela
longe longe longe numa
moldura mais que perfeita, e o
dia inteiro olho seu quarto, os quadros,
faz tanta falta aquela desordem!
ela está lá e está aqui
dentro de mim,
e quando sequer falamos
ao telefone é como se nem
entre nós um oceano
houvesse, como se nem.


.

Sem comentários:

Enviar um comentário