terça-feira, 26 de abril de 2016

Naquele tempo, era costume chegarmos de madrugada
às grandes capitais do mundo, depois de varrermos países
e países de estradas secundárias com as nossas lanternas,
e anunciarmo-nos como quem veste a guerra e o amor,
fazendo soar os sinos dalgum pequeno campanário de algibeira,
normalmente defronte de um balcão feito cascata,
enquanto as nossas vozes vendiam ilusões bíblicas
às raparigas que olham para o tecto como se fosse o chão.

Era ainda demasiado cedo para que os sapatos se impusessem
entre os pés e a estrada; demasiado tarde, todavia,
para que lhes confessássemos os jardins onde sonháramos
imagens difusas, feitas apenas de cor e dispersão,
antes da ordem, muito antes do caos, a anos-luz da arte
e do abandono. Uma força imoral, uma urgência rara como todas
as urgências, decompunha espelhos sobre espelhos, encadeava
os dias e inventava a serpentina aparentemente interminável
a que se chama vida quando se tem ainda a dentição intacta.

Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos
escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados,
como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar
entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se
as nossas namoradas de Toledo ou Avinhão não se tivessem abortado
a si mesmas quinze vezes, e os anos, também a elas, não toldassem
os passos, como vómito até aos calcanhares. Resta-nos
a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado
até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partita de Bach
para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós
para sentir a deserção da água, a inominável deserção da água,
de todas as praias a que não voltaremos.

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