segunda-feira, 4 de abril de 2016

Como se em Surdina

Como se em surdina madurassem os figos.

Em vão
procurei a doçura, esse fruto, essa voz que ouvi nos
confins de um século —

alta, de uma ascendente beleza;
assustadoramente percutida pelos martelos do tímpano.

Quando se vai para o outono, modula-se a vida de
fios brancos, sinais que pesam numa cabeça meditativa.

Se vos digo os sulcos que há na fronte é porque o
silêncio pousa no alto dos dias.
Se recordo é um perfil, braços, rostos que moldei —
era como um trabalho ardente, uma ciência pura —

soltando-se das minhas mãos.
Como estranho pássaro caí desse céu, ferido pela treva.
Envelhece-se com as pancadas de uma arqueologia lunar.
Com tão pouco se fundam os alicerces, a casa de um homem:
caves, cúpulas, os alpendres virados ao mar,
o primeiro beijo ao entardecer das sebes.

Morre-se tão de repente.
Morre-se vagarosamente.

José Agostinho Baptista (1948)
Biografia

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