terça-feira, 26 de abril de 2016



§

POEMAS DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é familia,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem familia).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traíu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua bôca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

E tenho pêna de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me nalma o crepusculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Alcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

§

Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, emfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A propria maravilha tinha côr!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tedio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

§

Escavação

Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh'alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à fôrça de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo...
- Onde existo que não existo em mim?

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bôcas esmagadas -
Tudo outro espasmo que princípio ou fim...

§

Rodopio

Volteiam dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas tôrres de marfim.

Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, farois,
Upam-se estátuas de herois,
Ondeiam lanças e mastros.

Zebram-se armadas de côr,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...

Cristais retinem de mêdo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segrêdo.

Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lirios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...

Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.

Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emmaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes...

(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas -
Um lenço, fitas, dedais...)

Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.

Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, paúes, ravinas
Que não ouso percorrer...

Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas -
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...

§

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
    Pilar da ponte de tédio
    Que vai de mim para o Outro.

§


Ângulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? —
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...

 — Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...

Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também, ou porventura,
Fundeaste a Oiro em portos de alquimia?...

.....................................................................

Chegaram à baia os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado.
Mas a ponte era falsa — e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...

 — Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes —
Um outro que eu não posso acorrentar...

§

Sete canções de declínio

1.

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto d'Astro -
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada -
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada. . .


2.

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.

Desfiles, danças - embora
Mal sejam uma ilusão.
- Cenários de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
- Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante -
O amante sem amante,
Ora amado ora traído...

Lançar as barcas ao Mar -
De névoa, em rumo de incerto...
- Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

...E as minhas unhas polidas -
Ideia de olhos pintados. . .
Meus sentidos maquilados :
A tintas desconhecidas...

Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...

- Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Giro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!...


3.

- Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras -
Siga sempre o festival!

Kermesse - eia! - e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
Defronte do carroussel,
Eu, em ternura esquecido...

Fitas de cor, vozearia -
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs - os meus afectos
Com librés de fantasia!

Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

- Afectos... divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisõe

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena - decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.


4.

As grandes Horas! - vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime -
Sacrifícios são novelas.

«Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto»...
- Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha .
Dizer-me que passa fome:
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam - dominem
Sua sorte em suas mãos:
- Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter;
O nosso caminho é d'Astro!
Luto - embora! - o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há-de ser!. . .


5.

Vaga lenda facetada :
A imprevisto e miragens
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada. . .

Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris -
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores...

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram -
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram...

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda. . .
Saudade que não recorda -
Bola de tennis no ar...

Um leque que se rasgou -
Anel perdido no parque -
Lenço que acenou no embarque
D'Aquela que não voltou...

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul...

Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos -
Balão aceso - defeitos
De instalação provisória. . .

Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes -
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita...

Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há -
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole...

Pinturas a «ripolin»,
Anúncios pelos telhados -
O barulho dos teclados
Das Linotyp' do «Matin»...

Manchette de sensação
Transmitida a todo o mundo -
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revol'ção...

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo - cheio
De carimbos, lado a lado...

Nobre ponte citadina
De intranquila capital -
A humidade outonal
Duma manhã de neblina...

Uma bebida gelada -
Presentes todos os dias...
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada...

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios -
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida -

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande...


6.

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida. . .

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na ideia dum país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...

Parou ali a barca - e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... - ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...

... Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguecida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças d'honra libertas sobre o mar-
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos - carícias de âmbar flutuando...

Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais -
Sobre a cidade, a luz - esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho - solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco - a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos - seu brou-u-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu - a estátua «que nunca tombará»...


7.

Meu alvoroço d'oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
- Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!


          (Paris - julho e agosto 1915)


.
.
.

Sem comentários:

Enviar um comentário