segunda-feira, 23 de maio de 2016

Se falássemos de amor falávamos de outra maneira. 

A imagem de qualquer pedra servia bem a desordem 
que vai sobre esta mesa 
o copo de cerveja 
admiráveis modos de viver 

o mais mortal amigo é sempre qualquer coisa. 

Assim explicava os grandes reinados rituais 
o produto da terra 
a arte da guerra 
a ilusão vindo de muito longe 
a única árvore o único poço por fortuna. Hábil 
guerreiro e de palavra. 
Contra ele os que foram foram inutilmente. 


João Miguel Fernandes Jorge, in "Meridional" 

domingo, 22 de maio de 2016

Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane,
my favorite things... O crepúsculo

da memória esbate-se
em ténues raios de
luz nos ecos desses dias:

Não vás ao mar, Tóin'... O tédio
dos sessenta, procissões,
indolentes romarias...

cheiro a fritos, farturas...
Nostalgia? Toca a
banda no coreto... Que

vontade de uivar, de 
correr, de fugir p'ra longe
desse imenso torpor.

Mário Avelar, Pela Mão de Mussorgski numa Galeria com Anjos (2000)
Arte Poética

A palavra despe-se
O silêncio despe-se

Nus
Os sexos ardem

Os seios da palavra
Os músculos do silêncio

O silêncio
E a palavra

O poeta
E o poema

Daniel Faria (1971-1999)
Poesia
(edição de Vera Vouga)

sábado, 21 de maio de 2016

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La caricia de luz by Leila Amat Ortega


No puedes besarme tras el agua de Nigeria la perdida. Qué limpias están las tierras que no piso en el laberinto de las distancias que acunan el papel de un mapa y patean lo que creo que está cerca. Un avión tacha el cielo o el azul que África recuerda. En tu presente vertido al tiempo escucho los gritos de los hombres que pierden los dientes en la furia de recordarte.

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The morning after the night before, Polly Brown


Pergunto se não corre esta secreta
música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir do ser na noite aberta.

Eugénio de Andrade

.


"Absence of evidence is not evidence of absence!"
-- Carl Sagan, Astronomer


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sexta-feira, 20 de maio de 2016

Adolescentes

A íntima cruzada da sua alma dispersa,
o sangue
insuportável, possuíam-no.
E era como um coro, rouco, gregoriano,
esse cavalgar perdido no deserto, esse amalgamar
de cruéis erros de cálculo, de posses
repetidas pela insónia.

Testava o tamanho do seu membro
como quem pretende contratar para si a morte,
ou temia esse glandular inflado do desejo
nas sevícias da infância,
no corpo que cresce só e se repete na noite
numa fala só, isolada do mundo.

Tornado que foi público
o seu acesso ao sexo, a sua forma de estar por entre
a gente e nesse estranho lume caldeado,
tornaram-se os testículos
em sinais de fogo que pouco a pouco
se cobriam de água, impura,
magoada.

E depois disso, diz-se, nunca mais sorriu.

Armando Silva Carvalho (1938)
De Amore

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Auto-retrato

De estatura mediana e voz
nem delgada nem grossa,
filho decano de um professor primário
e de uma modista que atendia em casa;
débil por nascimento
ainda que devoto em boa mesa;
de faces esquálidas
embora abundante quanto a orelhas;
de rosto quadrado
onde os olhos mal se abrem
e um nariz de boxeador mulato
por cima da boca de um ídolo azteca
- tudo isto banhado
por uma luz entre irónica e pérfida.
Nem muito ágil nem tonto no remate
fui o que fui: uma mistura
de vinagre e azeite de comer
um embutido entre o anjo e a besta.


Nicanor Parra (1914), in Epitáfio (1970).

terça-feira, 17 de maio de 2016

" Tus ojos, bella Flora, soberanos,
        y la bruñida plata de tu cuello,
        y ese, envidia del oro, tu cabello,
        y el marfil torneado de tus manos,

        no fueron, no, los que de tan ufanos
        cuanto unos pensamientos pueden serlo,
        hicieron a los míos, sin quererlo,
        tan a su gusto victoriosos llanos.

        Tu alma fue la que venció la mía
        que espirando con fuerza aventajada
        por ese corporal apto instrumento,

        se lanzó dentro en mí, donde no había
        quien resistiese al vencedor la entrada,
        porque tuve por gloria el vencimiento "

         Francisco de Medrano ( 1570-1607 )
Entrei devagar no ritmo de um salmo
E havia luz
Era uma luz como uma árvore quando cresce
E estando em flor era um dia inteiro
Entrei com a sombra pela cintura como algo conquistado
Com o sangue a escorrer-me para os pés. Mas mesmo
Que não sangrasse eu entrava em triunfo
Inteiramente vencido.
Entrei para um laço sem saída porque era um nó aberto
E tinha os pés regados pelo sangue que dá vida
Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre
Entrei em morte sucessiva no que vive
Era a luz de uma árvore quando cresce
E se ensombra para não ficar sozinha
Daniel Faria
Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.


yannis ritsos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. eugénio de andrade
assírio & alvim
2001


Santo Agostinho: “O amor é o meu peso. Onde eu for, ele me levará”.


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á não encontro nos jornais tão frequentemente como noutros tempos aquelas pessoas que escrevem bem e nos arrastam da primeira à última linha dos seus textos sem qualquer dificuldade e com todo o prazer. Mas não costumo falhar as crónicas de João Taborda da Gama no Diário de Notícias, sobretudo se os temas me interessarem. Uma das últimas que li dizia respeito, entre outras coisas, a impostos sobre gorjetas – e a verdade é que me senti «gratificada» pela leitura, tendo aprendido muita coisa. Descobri, por exemplo, que a nossa palavra «gorjeta» vem efectivamente de «gorge» (garganta em francês); e faz, aliás, todo o sentido que assim seja, uma vez que «gratificação» em francês se diz justamente «pourboire» (para beber, à letra), ou seja, dava-se um dinheirinho a alguém que nos fizera um serviço para ir molhar a garganta (a «gorgette» será algo como um golinho; e até seria giro dizermos: «Obrigada. Tome lá para um golinho.»). O cronista presume que esta forma de retribuição é um pouco estranha (talvez porque hoje pensemos que, ao dar uma gorjeta, estamos no fundo a dizer «vá tomar uma cervejinha», a alimentar o alcoolismo), mas depois conclui que, muito provavelmente, essa palavra remonta a um tempo em que alguém tinha de fazer por vezes um longo percurso para cumprir o serviço (imaginem: ir entregar uma encomenda a pé) e, por isso, merecia um copinho de água. Um dia destes vou pôr-me a investigar donde vem «tip», a gorjeta inglesa…
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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou cego
seguindo as mãos – sim, toco as palavras nas suas superfícies
e utensílios.
A primeira palavra que os olhos viram, agora que a recordo,
parecia uma imagem – sim, um som desenhado como um fóssil
(falo de fóssil, mesmo
que ele demore muito a aparecer no que digo),
um som do tamanho de um azulejo: agora que me lembro que era uma palavra
que brilhava nos meus olhos ao vê-la
(ver uma palavra era uma planta muito diferente,
um oxigénio muito difícil de se respirar).
Sim, agora vejo que falo, embora possas pensar que sigo pelo tacto a escrita.
Sim, eu leio e decifro. E agora sei que oiço as coisas devagar.
Daniel Faria

[Amar sem caminho ]



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Amar sem caminho
através da reinvenção do silêncio
.
A tentativa de espelhar a espessura
do meu desejo na rosa do teu rosto.
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Uma escrita afundada em ti
A paixão que racha os muros da noite
paralela à minha mão
desperta e livre
a vaguear
na tua pele
como uma chama.
.
Paixão que dimana da terra
para todo o meu enlouquecimento,
uma inconsciência ritmada como as ondas
a escrever no teu corpo
que se eleva e contorce
flexível e fulminante
saindo-nos o beijo
sobre a volúpia das algas.
.
.
mas do igual do tempo
sem uma palavra, nos encontramos,
e o mar é sermos nós
no nosso leito
e voltarmos a nós
nos nossos passos
de silêncio
sem caminho.
.
o amor que o luar não tinge
um mar que se abre
na garganta
para a inominável deserção da voz
.
-
-
antónio carneiro
.

Ólafur Arnalds ~ Tomorrow's Song

Não há lado esquerdo na metafísica,
O que não é uma limitação.
A produção industrial de problemas
Solta para o ar nuvens espessas
Que interferem no aeródromo.
Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo
Porque, entre os vários desenhos, os miúdos
Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito
Pesa mais que a existência concreta de um
Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre
O Nada e a montanha. Entretanto, a
Natação tornou-se importante para a cidade
Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo
Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais
Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também
As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos
Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.
O mundo é perfeito de todos os lados,
Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico
Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.
O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem
Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera.
As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,
É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês
Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente
As aves baixas.
No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,
Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações
Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por
Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,
Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque

A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

Gonçalo M. Tavares