sexta-feira, 25 de março de 2016

Escrevi muitas cartas. Algumas parecidas
à bela suavidade das lágrimas, amplas
como a noite que nos arranca o amor e o adormece.
Outras tiveram a eternidade da paixão.
Umas poucas páginas serviram para soltar
o próprio consolo, escondê-lo num envelope branco
e deixá-lo voar, junto com o passado, esquecê-lo
por fim, pois já ficou escrito: ficou o mundo triste
pelo poderoso infinito das palavras.

Os sentimentos vão-se desfazendo atrás de cada
letra, e tem-se saudade do que a ausência apagou
já da alma séria, murcha pala paciência,
o profundo vazio, a distância, o amor
impossível (o amor tão grande que não conheceu
outra noite além da sobra que sepulta a terra).

O resto de cartas nasceu quando chovia
dentro do outro mundo: no centro do coração
que sonha converter-se em pedra. E ser memória.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

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