sábado, 14 de janeiro de 2017

POEMAS DE SOFIA MARIUTTI

doencinha

diz que eu sou o mais bonito
diz que desde que me viu soube
que eu era o mais bonito
diz que eu sou o homem
da sua vida que eu sou o mais
alto que o meu pau é o maior
diz que já sabia desde antes
diz que já sabia desde antes
de me ver que todo o seu passado
não valia nada diz que você não vale nada
olha bem como você é vulgar

olha bem no fundo dos meus olhos
e pergunta onde é que eu estava ontem
à noite com quem voltei que horas
essas coisas da sua cabecinha de menina
que finge que acredita nas minhas mentiras
adoro quando você faz cara de boba

o seu rosto esconde uma verdade
virginal uma pureza
que só eu sei ver

agora levanta
e pega meu celular
faz o que quiser com ele
brinca que ele é todinho seu

isso
mostra pra mim essa sua doencinha
vamos discutir por seis horas
em cima dessa cama
adoro quando você chora

grita que vai se jogar da janela
suspira no meu ouvido que já tomou
a caixa inteira de antidepressivos

vai, pega essa sua doencinha
e esfrega na minha

vamos fazer um ménage à trois
no consultório do meu analista
vamos fazer terapia
de casal vamos visitar
o hospício da cidade 

pega essa sua doencinha
e deságua na minha

me morde e machuca
deixa meu corpo marcado
finge que quer muito
que eu seja só seu
que tal extinguir esse
limite entre você e eu?

§

réquiem para o alto rio negro

nos igarapés do rio uaupés
cada igreja erguida é um túmulo
cabari japú tiquié timbó
riachos que não constam
dos grandes mapas de navegação
virtual

nas margens do rio içana
cruzes foram içadas
e fincadas com afinco
no topo de templos cristãos
atestando "aqui jaz o povo tal"
hupda tukano siriano baniwa pira-tapuya
todos enterrados sob os internatos
salesianos

os desana não são decanos
os dow não são deãos
não há missão sincera que insira casamento
camiseta de algodão culpa plástico perdão
não há missão sincera que assassine línguas
pajés curas medicinais rituais que se transmitem
de geração em geração

sobre as sobras de uma noite de festa
resta apenas um demônio sombra negra
justificando o que ninguém entende
o suicídio de duas jovens índias
cada uma em um canto da aldeia
batizada pela igreja santa cruz
do cabari

a corda que sustenta o sono numa rede
de sisal quando amarrada no pescoço
inaugura um sono profundo
que as livrará de todo o mal

nos igarapés do rio uaupés
nas margens do rio içana
quinhentos anos de cortejo
e os índios seguem carregando as cruzes
do seu próprio funeral

era essa a lição das cruzadas?
sucumbir ao abismo da existência
esse modo tão branco de morrer
a palavra de cristo não sei mas
a questão de camus
chegou aos "selvagens"

nos igarapés do rio uaupés
nas margens do rio içana
hoje todos os afluentes do alto rio negro
estão de luto

§

Coleção de simetrias

ele parece tecer a pele.

mega rima? miragem.

suam só os maus.

lá, ivan, açoita a ti o canavial.

ô, padre, meu, que merda, pô!

é pesado? foda-se, pé.

olé! bacon no cabelo.

rezar pra dar prazer.

ode: me doma. amo de medo.

ode: me coma, amo cê. medo.

a cavalo: olá, vaca.

é desejo hoje sede.

é, dá duas, saudade.

sem elos somos só lemes.

o vô, nona, ó. né? tá a naná até no ano novo!

§


questões gramaticais

você disse porque você não me dá um beijo eu disse
esse porquê é separado você disse eu já sei é por

que você não gosta de mim eu disse esse porquê é junto
porque você não responde a minha pergunta você disse
se fosse uma pergunta seria por
que você não me dá um beijo? dou sim não eu não
estava perguntando eu só estava te editando
eu não pedi pra ser editado eu só pedi um beijo
se você me beijasse em vez de ficar perguntando eu te
beijaria e depois diria que gosto sim e muito por quê?

você perguntou e eu não saberia responder 


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