terça-feira, 24 de maio de 2016


Carla Diacov é uma poeta brasileira, nascida em São Bernardo do Campo em 1975. É formada em Teatro. Seu livro de estreia, Amanhã Alguém Morre no Samba, foi publicado em Portugal pela Douda Correria em 2015. Os poemas abaixo foram extraídos deste livro.

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Seu segundo livro, Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse, está no prelo pela mesma editora.

§

POEMAS DE CARLA DIACOV


em noites mais quentes fazemos chás
da primeira mansidão da noite quente
chás
ou então sopas
das folhas imóveis das pedras agitadas
mentira
é que faz-me falta ter o homem do adubo
é que faz-me falta ter a mulher do adubo
nas noites mais frias faríamos sorvetes
ou então mentiras
é que eu estou só
estou só
conheço tudo pelo tato
em noites amenas estou só e toco a campainha dos vizinhos e corro
                          [pra debaixo do lençol só

uns fios de estar só
uns fios de cabelo na boca e só

o peso dessa espera me puxa pra cama
a gravidade dessa espera faz-me mais
longa me joga aos postes
me empurra ao largo das borrachas infláveis

estou só
conheço tudo pelo tato
a mentira dos olhos ouvidos
o truque nos joelhos dos poetas

faríamos chás sorvetes mentiras sopas

§


Maçã mal cabida

faz já dois candelabros que ela não olha para trás
uma mulher de olhar para trás
mas então agora é o prato chinês
os ossinhos do pato no canto perto
da mão esquerda
o garfo com seus dentes virados
para o quadro onde um cavalo e sobre ele
uma garotinha forçando o rosto num
raio de sol muito mal pintado num
tom de maçã mal cabida ali
pobre
pobre beleza pobre mal cabido ali
faz já umas três ou quatro eternidades que ela não olha para trás
metodologia de sondar sem ver
uma faca no assoalho de cupins
uma vaca bordada no guardanapo novo
uma mulher e um homem e uma roda de tortura
uma vaca bordada na cara da mulher
onde o homem maria de deus
uma propaganda de desodorante e uma cachoeira e a torradeira quebrada
uma vaca bordada na cara dela
e se ela se botasse a cantar e se
se ela botasse a querer lamber um peito marinho
e se ela se botasse
a pensar num estupro supracoreografado
uma vaca e três ou quatro búfalos que ela não
ela usa um terno cinco tamanhos maiores
faz treze luas que ela não
faz treze náuseas que ela não olha para trás
uma sala escura bordada no estofo da cadeira vazia
uma mesa tão longa que ninguém deu-se a bordar
um tipo incerto de deus que fez da incerteza da mulher
coisa bordada no quadro com a maçã sobre o rosto mal chaveado
cavalo sob menina rija sobre raio de sol fruto de fruta mal cabida ali
se ela se bota a voltar a olhar para trás
se ele se bota a pensar em sexo com talheres de azar
se ela se bota a criar uma boa superstição com taças
já uma colisão de ângulos entre a janela e o espelho que ela não
                     [olha para trás
se ela se bota a querer o tórax a devolver a coxa e a asa
se ela se bota a entortar o quadro
uma maçã e uma rigidez infantilizada e uma cor de tortura
uma carcaça bordada na cara da mulher
onde o homem maria de deus onde o homem
se ela se bota a cruzar os ossos
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a estranhar os milagres ali sobre a mesa sob as unhas
se ela se bota a pentear a franja com o garfo
se ela se bota a cruzar os ossos ou os dedos ou as pernas
se ela se bota a contrair o útero se ela se bota a relaxar o útero
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a contrair o útero entre o primeiro e o último sopro fatal
faz já onze moscas que ela não olha para trás

§

entrega-me a palavra amanteigada
sou bem mais súcia sendo a louca da
rua da pamonha
doze ovos pelo preço de um cão
dopa-me despe-me carca-me
machuca minhas dobras atando-me reta
ata-me ao palavreado vicioso
tranca-me ao sanatorinho das sentenças que
não
sou mais louca falando jaula flácida
entupimento pela cor
meta no meu reto sua pose de cu
veja como em qualquer circunstância
tua boca besuntada em pink fica bem
meta na minha boca seus doze corações de abóbora
dobra-me a vista a crista
meta na minha cuia seus doze papos de anjo
lasca-me o nariz até fazer flecha
aponta-me o orifício
abóbada zinco lips coniforme mientras
eu nunca mais vou aprender a falar nó
eu nunca mais vou esquecer de te dizer mó


§

ela anda com as solas das
mãos para fora
vermelha
anda como quem pede
e se dormir andando
e se espirrar andando
ela dorme como quem peca
vermelha
e se um caco de vaso a segurar pelas mãos?
e se um rouxinol a atropela?
e se lhe resolve pesar o vermelho no coração?

§

mulher com galhos
cingida pelos teus próprios galhos
morrendo de medo de nada
nada é mesmo engraçado
mulher com galhos risonha
e a mulher com galhos passa atravessa a ponte de prata
ajeita os galhos
queima os cascos
e continua rindo abana o rabo égua
certa de que está no caminho errado
rindo
mulher de galhos
linda meio linda e metade égua
linda
rindo feito égua
tua língua é olho-d’água e gaiola
tecido que bordo
debrum da colcha onde quero me enrolar nos dezembros todos
tua língua d’égua

§

o burro trota tão lentamente
perdido do nome gritado
carrega ovos nas mãos escondidas nas
mangas do casaco extralargo
coitado do burro com mãos
perdido da moldura antiga
pacífico de sua própria demência
bonito tão bonito pacífico tão lindo
lentamente ruma
já a casa de fé nos olhos de burro
parece um peixe coitado pacífico
tem esse jeitão de aquário trincado
gosta de cadeiras em geral
mas é boa gente
gosta de leite quente e de cadeiras
em geral
chega ao templo das irmãzinhas castanheiras do último dia
deixa os ovos no altar
faz carinho nos porcos
pega o microfone e repete
quase porque quase porque quase
tudo empilhado
quase porque quase porque quase porque

é mesmo um burro
queria ser pianista
tem muita fé quase porque tudo empilhado
mas é mesmo um lento burro de carregar ovos
pacífico todo pacífico demente e lindo
tão bonito tudo empilhado

§

foi concebida em sonho e funciona
como digo agora
digo que funciona com rodas
papai passa pelo tecido e o aplaude
em pé
o vendedor corre o balcão
mede
corta
embrulha
amarra tudo com um cordão vermelho que faz laços
à felicidade de papai
papai que chega desembrulhado e
com todo e mais algum amor
cobre a máquina com o tecido de motivos marítimos
no que a família toda comemora tomando
suco de cana e arrotando nomes da pilantragem atual
e assim é que
realmente funciona a máquina de costurar
o que diz o manual é outra dança

§

passo por esse casal de amantes
é como meter as mãos num balde de sardinhas
são tantas as mordidelas
estou ferida
não é mortal
passei por aquele casal de amantes
foi como meter num balde de sal
estraçalhadas
as mãos
são tantas as sardinhas
como corta o sol
nem meio gato à vista
como corta a luz
como corta o navio
são tantas as escamas
é como meter as mãos
são tantos os braços
nem meio gato
nem meia língua
nem meio mal

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