terça-feira, 17 de janeiro de 2017



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999

*

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