quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

[para a Inês]

 
Tudo se perde, claro. Mas lembrarei
seguramente os olhos vermelhos
de um gato de Alfama e todos os poemas
que não escrevi contra mim próprio,
naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.

Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas
num diálogo de guitarras desatentas.
Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,
e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite
pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,

quando se percebe o desabrigo, a difícil
pertença a esta espécie de gente,
comunidade de louco deserdados a que
o empregado, de bigode, chamou
«o pessoal da bebedeira». Porque isto
que não passa, sabemo-lo bem, é a vida

ou a morte, uma perda que dura
e que não se apaga assim, sob um cerco
de navalhas ou de inúteis, vigorosos
sentimentos. Por exemplo o amor,
essa estranha mistura de angústia, desejo
e novamente angústia. O não apenas sexo
de adormecer em braços reais
que afastem para sempre o mundo.

Mas acabo por subir cambaleante as escadas
à hora em que o vizinho de baixo
se prepara para ser uma pessoa altamente
honrada, no talho de bairro
que lhe dá sentido aos dias.

E não é dor, nem prazer, nem
ressentimento o que um corpo
sente, às seis da manhã, prostrado
na lama involuntária destes versos.
Antes um vazio imperfeito, uma
ferida sem lugar que nenhuns lábios,
sequer os teus, saberiam calar.

Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.
Não esperes grande coisa da felicidade.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002

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