segunda-feira, 14 de março de 2016

A Herança

Da última vez que morri (e, querida, morro
Tantas vezes quantas de ti me aparto)
Ainda que tenha sido há uma hora apenas,
E as horas dos amantes sejam uma eternidade,
Consigo recordar, que eu
Disse algo, e concedi algo
Que, apesar de morto me fez voltar, e obrigou a ser
O meu próprio executor e herança.

Ouvi-me falar: «Diz-lhe já
Que eu» (ou seja tu, não eu)
«Me matou»; e quando me senti morrer
Deliberei enviar o meu coração depois de ter partido.
Mas — infeliz! — não encontrei lá nenhum,
Quando me abri e procurei no sítio onde se guardam.
Matou-me outra vez que eu, sempre sincero
Em vida, na minha última vontade te defraudasse.

Se bem que encontrei algo semelhante a um coração,
Mas tinha cores e cantos.
Não era bom, nem era mau,
Não era fiel a ninguém, e alguns o partilhavam.
O melhor que se podia arranjar por arte
Parecia; por isso, triste por nossas perdas,
Pretendi mandar este coração em vez do meu.
Mas oh, nenhum homem o podia segurar, porque era o teu.

John Donne (1572-1631)
Poemas Eróticos
(tradução de Helena Barbas)

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