quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Carmen

O meu desespero regressa a ti.
Depois de tanto ter errado, hoje o meu amor
regressa ao teu altivo volúvel ardor,
nada mais pede que a tua honestidade.

Nestes longos dias de palpitação,
que sem luta e sem paz correndo vão,
e sem a tua gaia crueldade;
com a minha solitária alma magoada
por todo o lado a tua imagem gravada,
sonhei que eras também por mim assassinada,
pela embriaguez de chorar por ti.

Inculpável amiga, filha austera
do amor, se a vida hoje te desterra,
com a música junto de mim te sinto até.
Tenho ciúmes não de dom José,
não de Escamillo; mas de quem antes um canto
entoou à tua pureza e ao teu santo
bravor indo ao encontro da tua verdade.

Nem sequer vives num distante lugar,
de mim a ânsia ao teu amor sempre voltada,
e não busco em Sevilha a tua morada.
Só vagueava na manhã de uma jornada
de festa, e entre a escura multidão de fútil ar
tu me apareceste no traje popular
de Florença; a tua mão estendida tinhas
a soerguer de uma igreja as cortinas,
as rubras e amarelas cortinas da entrada.

Parecias doente, parecias-me prostrada,
mas reconheci-te, por teres sido tão amada.

Eu que só a custo retive um grito,
acabei por merecer um teu sorriso.

Umberto Saba (1883-1957)
Poesia (uma antologia de Il Canzoniere)
(selecção, tradução, introdução e notas de José Manuel de Vasconcelos)

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