segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016


[Um insecto desajeitado, muito maluco,]

Um insecto desajeitado, muito maluco,
sobrevoou a folha e estatelou-se
na pequena poça de água formada
pelas gotas que iam caindo
uma a uma devagar. Vindo
do nada, o frenesi de uma imagem
irresistível que é preciso captar
ataca pela base e chega depois
aos dedos, faz descobrir o uso doméstico
de uma metáfora e escrever,
porque é uma coisa que ninguém 
pode ouvir, coisas deste género:
parece a minha vida, com a infância
a pular sobre a adolescência
e a estatelar-se redonda aí por essa idade
em que se sente a necessidade
de ser parte de um casal, em que se acha
mesmo que ser parte de um casal
é a coisa melhor do mundo.
Não se imagine o poema, imagine-se
o diálogo teatral, com a réplica numa ira
tradicional, ligada às impossibilidades
do ser, a plenos pulmões uma raiva
que não se sabe bem de onde vem.

Helder Moura Pereira (1949)
Se as Coisas Não Fossem o que São

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